(Advertência - O texto é longo e pode fazer mal à sua religião! – quer enfrentar?)
Um Tsunami inundou as praias asiáticas e eu, angustiado com aquela tragédia, escrevi um texto. Erradamente, vazei minhas dúvidas, deixando transparecer em público a minha dor.
Acontece que isso não se faz entre evangélicos, que convivem com certezas. Quase fui linchado em praça pública, já que os protestantes brasileiros se habituaram a “convicções fortes” a uma “fé inabalável” e a “afirmações irredutíveis”.
Outro erro meu: tolamente não cogitei, naquela altura dos acontecimentos, que teólogos e pastores já tivessem respostas com argumentos teológicos muito melhores do que os meus – tenho mais dúvidas do que certezas - para explicar a morte de algumas centenas de milhares de pessoas – a maioria pobre.
De lá para cá, se espalha um amontoado de fofocas pelos corredores evangélicos sobre minha adesão à Teologia Aberta – “Open Theism” em inglês. Como as pessoas ouvem o galo cantar, mas não sabem onde, recebo cartas quase diariamente me perguntando que bicho é esse chamado de Teologia Relacional.
Alguns queridos também escrevem preocupados com minha vida diante dessa "nova heresia”. Teismo Aberto e Teologia Relacional não são a mesma coisa. Vou tentar explicar a diferença.
Começo afirmando que não gosto de rótulos ou cercas que buscam circunscrever as pessoas dentro de categorias. Considero pobre e reducionista taxar alguém de calvinista, arminiano, liberal, relativista ou de qualquer outra coisa. Digo isso porque busco não deixar-me restringir a uma “nova” teologia ou repetir pensamentos enlatados, vindos de fora.
Lamento que professores de seminário continuem achando que aderi a uma única escola vinda dos Estados Unidos denominada “Teologia Relacional”. Eles nem sabem que esse termo é totalmente desconhecido lá.
Aliás, o termo “Teologia Relacional” foi cunhado por mim e pelo Stanlei Belan, um engenheiro muito amigo, membro da Betesda. Em nossos “papos-cabeça”, notamos que carecíamos de uma expressão que nos ajudasse a conceituar nossos arrazoamentos.
Realmente não dá para imaginar que dois tupiniquins o inventaram nos arredores de São Paulo durante um retiro de carnaval.
Mas ao que Stanlei e eu nos referíamos quando criamos a expressão Teologia Relacional? Vamos por parte.
1. Deus se relaciona com mulheres e homens em amor.
Entendemos que a declaração joanina de que Deus é amor não visa conceituar ou definir filosófica ou teologicamente como um atributo divino, mas descrever a maneira como Ele decidiu soberanamente relacionar-se com a humanidade.
Entretanto, vimos que, ao dizer que Deus é amor, complexas implicações se levantavam. Decidimos levá-las às últimas conseqüências, foi aí que acabamos confrontando algumas práticas e percepções religiosas.
Senão, vejamos:
a) Um dos atributos do amor é liberdade. Entendemos que não seria possível falar sobre amor e, ao mesmo tempo, aceitar que ele aconteça com algum tipo de coerção.
Sim, Deus pode arrastar (no calvinismo: “Graça Irresistível") para si quem quiser. Mas, não é assim que a Bíblia revela seu amor. Se agisse dessa forma, Deus teria subordinados, vassalos, marionetes, jamais amigos, filhos maduros ou parceiros.b) A liberdade como um atributo do amor, complicou ainda mais. Perguntamos: Como Deus pode conceder real liberdade, se sua presença, seu fulgor, sua glória preenchem tudo? Como mulheres e homens poderiam desenvolver virtudes, atitudes maduras e comportamentos responsáveis com a presença de Deus transbordando no mundo, na realidade espacial e nos espaços existenciais?
Deus se ausentou por amor!
O capítulo sobre o amor, escrito por André Comte-Sponville em “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes” (Ed. Martins Fontes), pode ajudar a compreender melhor o significado dessa ausência divina:“O que é este mundo... senão a ausência de Deus, sua retirada, sua distância (a que chamamos espaço), sua espera (a que chamamos tempo), sua marca (a que chamamos beleza)?
Deus só pôde criar o mundo retirando-se dele (senão só haveria Deus); ou, se nele se mantém (de outro modo não haveria absolutamente nada, nem mesmo o mundo), é sob a forma da ausência, do segredo, da retirada, como a pegada deixada na areia, na maré baixa, por um passeante desaparecido, única a atestar, mas por um vazio, sua existência e seu desaparecimento…
Temos aí uma espécie de panteísmo em negativo, que é a recusa de qualquer panteísmo verdadeiro ou pleno, de qualquer idolatria do mundo ou do real.
“Esse mundo enquanto totalmente vazio de Deus é Deus mesmo”, e é por isso que “Deus está ausente, sempre ausente, como indica de resto a famosa prece: “Pai nosso que estás no céu…”
Simone Weil leva a expressão a sério, e tira dela todas as conseqüências: “É o Pai que está no céu. Não em outra parte. Se acreditamos ter um Pai aqui na terra, não é ele, é um falso Deus.” Espiritualidade do deserto, que não encontra ou não prega mais que “a formidável ausência, por toda parte presente”, como dizia Alain, a que responde, em sua aluna, esta fórmula surpreendente: “É preciso estar num deserto.
Pois aquele que é preciso amar está ausente.” Mas por que essa ausência? Por que essa criação-desaparecimento? Por que esse “bem feito em pedaços e espalhado através do mal”, estando entendido que bem possível já existia (em Deus) e que o mal só existe por essa dispersão do bem, pela ausência de Deus – pelo mundo? “Só se pode aceitar a existência da infelicidade considerando-a como uma distância”, escreve ainda Simone Weil. Que seja.
Mas por que essa distância? E, já que essa distância é o próprio mundo, enquanto ele não é Deus (e ele só pode ser o mundo, evidentemente, desde que não seja Deus), por que o mundo? Por que a criação?Simone Weil responde: “Deus criou por amor, para o amor. Deus não criou outra coisa que não o próprio amor e os meios do amor.” Mas esse amor não é um mais de ser, de alegria ou de potência. É exatamente o contrário: é uma diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. O texto mais claro, mais decisivo, é sem dúvida este:
A criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser.
Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos.
Deus negou-se em nosso favor, para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. Esta resposta, este eco que depende de nós recusar é a única justificativa possível à loucura de amor do ato criador.As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação.
As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras...”.Embora ateu, Comte-Sponville parece compreender bem que realmente só temos de Deus nesse mundo, suas “pegadas”, sua “impressão digital” – “Os céus declaram a glória de Deus”.
Também concordo com John Hick (“Evil and the God of Love” - New York, Harper & Row; London, Mcmillan, 1966, p. 317) - quando elabora essa ausência divina do universo como um gesto do seu amor e não do seu abandono – como os deístas supunham:
“Ao criar pessoas finitas para amar e serem amadas por ele, Deus precisa dotá-las com certa autonomia relativa quanto a si mesmo”. Mas como pode uma criatura finita, dependente do Criador infinito quanto à sua própria existência e a cada poder e qualidade do seu ser, possuir qualquer autonomia significativa em relação a esse Criador?
A única maneira que podemos imaginar é aquela sugerida pela nossa situação efetiva. Deus precisa colocar o homem à distância de si mesmo, de onde ele então pode vir voluntariamente a Deus. Mas como algo pode ser colocado à distância de alguém que é infinito e onipresente? É óbvio que a distância espacial não significa nada nesse caso.
O tipo de distância entre Deus e o homem que criaria certo espaço para certo grau de autonomia humana é a distância epistêmica. Em outras palavras, a realidade e a presença de Deus não devem se impor ao homem de forma coercitiva como o ambiente natural se impõe à atenção deles. O mundo deve ser para os homens, pelo menos até certo ponto, etsi deus non daretur, ‘como se Deus não existisse’.
Ele precisa ser cognoscível, mas apenas por um modo de conhecimento que implique uma resposta livre da parte do homem, consistindo essa resposta em uma atividade interpretativa não-compelida através da qual experimentamos o mundo como realidade que media a presença divina”.
c) Augustus Nicodemus, teólogo presbiteriano, escreveu um texto (http://www.teologiabrasileira.com.br/Materia.asp?MateriaID=140) em que procura analisar a Teologia Relacional (a partir de agora, tratada por TR).
No primeiro ponto de seu arrazoado, Nicodemus tenta explicar quais seriam pressupostos da TR:
“O atributo mais importante de Deus é o amor. Todos os demais estão subordinados a este. Isto significa que Deus é sensível e se comove com os dramas de suas criaturas”.
Tentemos compreender, frase por frase, o primeiro ponto de sua argumentação:
I) “O atributo mais importante de Deus é o amor” –
Infelizmente, pela fragilidade de seus argumentos, parece que ele nunca leu as obras originais de Clark Pinnock, John Sanders ou Gregory Boyd, apenas o que seus críticos publicaram na internet.
Não conheço ninguém que, ao tentar descrever uma pessoa, consiga catalogá-la, como dona de um “atributo mais importante”, como: honestidade, justiça, bondade ou amor.
Se nas relações entre os humanos as complexidades são enormes, imagine a criatura tentando relacionar-se com o Divino. Deus não é uma “coisa” para destacar-se uma característica sua, mais importante ou mais singular.
Portanto, Nicodemus fez uma afirmação inconsistente com a revelação judaico-cristã de Deus como Pessoa, nunca defendida pelos escritores do teismo aberto ou por qualquer outro teólogo que eu já tenha lido.
II) “Todos os demais [atributos] estão subordinados a este” –
De novo, Nicodemus afirma sem poder situar a fonte da sua declaração. Entretanto, agora fica nítido que está arando terreno para o que vai dizer logo depois, quando exporá uma premissa fundacional do ultra-calvinismo - a apatia divina.
Nicodemus quer, com uma só tacada, demolir as premissas do teísmo aberto e minar o senso comum da tradição evangélica que reconhece a ternura de Deus.
Sua próxima frase vai negar noções intuitivamente percebidas pela grande maioria dos evangélicosa: Deus é afetuoso, sim.
III) “Isto significa que Deus é sensível e se comove com os dramas humanos” –
Espere! Mas não é precisamente isto que as Escrituras repetidamente expressam sobre o Senhor? Por que a TR seria uma heresia por acreditar nos afetos divinos? A não ser que Nicodemus leia as Escrituras com as lentes aristotélicas do “Motor Imóvel” ou da “Apatia Divina”, não há como entender o Deus da Bíblia, senão como uma Pessoa que se sensibiliza e se comove com o drama humano.
Considero desnecessário mencionar centenas e centenas de versículos tanto da Bíblia hebraica como da cristã em que o Todo-Poderoso lamenta e espera; sofre e ri; chora e tem paciência; pune e perdoa. Podem existir conceitos do Divino em que Deus não seja tocado pelo sofrimento humano, mas, seguramente, ele não se parecerá com o Deus Encarnado dos cristãos.
Finalizando, entendo que a Bíblia revela um Deus amoroso usando a metáfora do Pai para significar a intensidade como Ele nos quer bem:
“Como a ternura de um pai para com seus filhos, assim terno é Iahweh para aqueles que o temem; pois ele sabe de que somos feitos, lembra-se de que somos pó” – Sl 103.13-14.
FONTE: http://www.ricardogondim.com.br/Artigos/artigos.info.asp?tp=61&sg=0&id=1417
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